As Endoenças em Campanha no final do Século XIX
A
tradicional solenidade religiosa Semana Santa teve início com a criação desta
Paróquia, em 1739, pelo 4º Bispo do Rio de Janeiro, Dom Antônio de Guadalupe e,
com a criação da Irmandade do Santíssimo Sacramento, autorizada pelo Bispo do
Rio de Janeiro, Dom Frei João da Cruz, em 22 de setembro de 1742. O termo de
abertura, entretanto, é de 20 de abril de 1745, quando assinaram os primeiros
irmãos, tendo rendido a reunião, só naquele dia, 777 oitavas de ouro. As
maiores contribuições foram do provedor Francisco Lieira, com 150 oitavas, e a
do Alferes Bartolomeu Gomes Costa, com 50 oitavas. Foi a Irmandade do
Santíssimo que constituiu a primeira matriz do lugar, em substituição ao
acanhado templo então existente. Foi ela que a ornou convenientemente, para as
cerimônias litúrgicas. Seus irmãos, por mais de um século, comprometeram-se a
solenizar com a maior pompa as cerimônias da Semana Santa.
Desde
então, esse importante evento era o mais concorrido na cidade, onde todos os
cidadãos se preparavam muito antes do tão esperado acontecimento. Fato
comprovado nos jornais do município, especificamente no Monitor Sul-Mineiro de
13 de março de 1904, é noticiado pelo comerciante Manoel Ayres, uma grande
liquidação para a Semana Santa, com a chegada de bonitos e variados sortimentos
de fazendas, armarinhos, modas e perfumarias, vindo diretamente do Rio Janeiro.
Chegavam
em Campanha muitas caravanas de cidades da região. O trem tinha horário
especial durante a Semana Santa, em especial, na Sexta-feira Santa, o trem
chegava às 14 horas e a noite, após um silvo longo da locomotiva, regressavam
os visitantes.
Não
podemos deixar de destacar a preparação dos doces para a Semana Santa por Moças
solteiras que moravam no Beco da Igreja Nossa Senhora das Dores. Elas faziam
doces, biscoitos, balas, mães-bentas, quitandas, e além dos doces, produziam
rendas, flores de cera, flores de papel, toalhinhas de crivo. Essas gostosuras
eram vendidas por Estevam, um crioulinho que se vestia com um macacão
azul-marinho, com avental e gorro branco, ficou célebre e conhecido como o
Estevam das Moças.
O
melhor da Semana Santa, com toda a pompa que eram as cerimônias e as
procissões, eram os cartuchos! Os cartuchos eram prendas açucaradas, de amêndoas
e amendoins, de cravo e erva-doce. Por isso, havia vários tons, de vários
tamanhos. Era muito simples: um funilzinho de papel colorido com capacidade
para 100, 150 gramas. Haviam os maiores, todos enfeitados para os apóstolos no
Lava Pés, para a Verônica, para os carregadores de andor, para os das varas do
pallio, para os padre pregadores e para os músicos. Os cartuchos assumiam o
caráter de condecorações religiosas.
O
espetáculo acontecia na noite de sexta-feira, a procissão do Enterro. As
mulheres usavam indumentária feminina em tom de viuvez, com crepe, véus,
mantilhas. Os homens em paletós de sarja era o uniforme de grande gala do luto.
A Igreja parecia uma câmara funerária colossal. O jejum, o silêncio, a
penitência eram realmente obedecido pelos fiéis.
Existia
uma hierarquia, uma ordem de precedência, pré-estabelecida, irrevogável. As
zeladoras do Sagrado Coração com seus distintivos seguiam as irmandades. As
Irmandades do Santíssimo Sacramento, das Dores e do Carmo representavam a
aristocracia, os senhores da alta sociedade. A Irmandade da Boa Morte era
formada por pequenos lavradores. A Irmandade das Mercês era a congregação dos
homens pardos, dos ofícios manuais, alfaiates, mecânicos, barbeiros, ourives,
tipógrafos, funileiros, tanoeiros, músicos, pintores, seleiros, ferradores,
sapateiros. Em último lugar, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, padroeira
dos homens pretos, libertos das três categorias (sexagenários, ventre-livre e
treze de maio), chefiados por Elias Valladão. À frente da procissão, o
estandarte romano, trazendo impressas a ouro, sobre a tela verde, as fatídicas
iniciais: S. P. Q. R. (Senatus Populusque Romanu). Entre as duas alas, tomando
o centro da rua, Verônica se destacava, subindo em uma cadeira e desenrolava o
sudário trágico, cantava com a sua voz dolente, trêmula de soluços. Aquele
canto cortava, como lâminas de aço, o luar frio.
Atrás
vinham os músicos da Banda Dom Pedro II, do Maestro Zoroastro. Outras bandas
que se apresentavam nas solenidades da Semana Santa na Matriz, a Orquestra
Maestro Pompeu e a Banda Giuletta Dionesi.
Outro
fato curioso, que não podia deixar de ser citado, é que no sábado, ao meio-dia,
era pendurado na enorme árvore casuarina que ficava em frente à Matriz, um
gigantesco boneco de pano, que representava o Judas. Outros bonecos de Judas
eram colocados em diversos lugares da cidade, Judas da Rua do Fogo, Judas da
Chapada, até o Judas do Morro dos Pintos.
Os
bonecos eram conduzidos em cavalos, como palhaços, e todos vaiavam e a garotada
jogava pedras e, juntamente com esse episódio começavam os rojões, o repicar
dos sinos, o foguetório da Aleluia.
Encerramos
aqui um resumo das “Endoenças” em Campanha no final do século XIX.
Essa
importante manifestação religiosa em Campanha foi consagrada Patrimônio
Imaterial do município, e a Seção de Cultura e Patrimônio Histórico está
elaborando o seu Dossiê para ser entregue à Paróquia de Santo Antônio e ao
IEPHA/MG no final deste ano.
Flávia Villamarim Tegon – funcionária da
Seção de Cultura e Patrimônio Histórico, membro do IHG-CPA.
MIRANDA, João Pedro da Veiga. Maria Cecília
e outras Histórias. 1930. Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro.
MORAIS, Vinicius Vilhena de. Campanha que
conheci e vivi. 1915. Campanha (MG); B.H.R. Editorial, 1988.
Excelente texto documental. Parabéns Confreira Flávia Tegon pela pesquisa e divulgação de tão importante evento religioso em nossa Campanha/mg.
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